Uma observação a fazer: eu me acho uma mulher inteligente, amada e tenho grandes referencias de amor masculino, feminino. Cair nas armadilhas de um amor abusivo não é uma evidencia de problemas de personalidade, de caráter, de fraqueza. Chega de julgar as vítimas. Vamos julgar e tensionar aquele que comete o abuso.
Os abusos de um relacionamento não são apenas aqueles manifestados com violência explícita. Há aqueles que não são tão facilmente percebidos. Estes, os abusos silenciosos, vão, teoricamente, precisar de certa recorrência para caracterizar um relacionamento como abusivo (e ou tóxico). Contudo, eles em si já produzem em nós, no momento em que ocorrem, sentimentos incômodos que merecem atenção, pois, se estivermos despertas, serão as evidencias necessárias para acreditarmos que, mesmo silenciosa e discreta, aquela prática é uma forma de violência.
Se estamos em um relacionamento em que nos sentimos ferida de forma repetida é muito importante procurar pessoas de confiança para conversar e relatar o que está acontecendo. O incômodo que sentimos é um alerta do sistema emocional informando, através de crises de choro, angústia, raiva, irritação, tristeza, ansiedade, mal estar, desconforto, que aquele par amoroso está, em alguma dimensão física ou psíquica, violando nossa existência.
O abuso é um comportamento cruel, ferino, insensível, bruto, duro, frio, tirano e por vezes, sádico, que coloca em relação de força e poder alguém que controla, subjuga, submete, manipula e/ou agride outro alguém, e gera, em seu corpo ou sua alma, dor e sofrimento. Qualquer pessoa pode ter um comportamento abusivo em algum momento de sua vida dentro de suas relações: mulheres, homens, crianças, velhos, jovens, lésbicas, gays, mães, pais, filhes. Contudo, quando praticado no cotidiano da relação, como um padrão de vínculo, de afeto, de comunicação, torna quem pratica, um abusador/uma abusadora. Esse padrão tem sido observado dentro das relações amorosas e denunciado por existir com predominância de ser praticado por homens (práticas sexistas), por pessoas brancas (práticas racistas) e por heterossexuais (práticas LGBTQIA+fóbicas).
Comigo aconteceu dentro de uma relação heterossexual. Ele CIS heterossexual e eu uma mulher CIS bissexual. Eu, mais velha, 40 anos. Ele 33. Nossa pele: negra. Ele guineense, eu brasileira.
Eu ouvi os sinais do meu sistema emocional (e do meu corpo) desde o primeiro ato abusivo. Essa voz que me alertou é chamada de intuição, inteligência emocional, mas também subjugada como loucura. Eu ouvi, mas demorei sete meses para conseguir acreditar e validar que eu estava em um relacionamento abusivo, mesmo reconhecendo, desde o primeiro incômodo, as atitudes ferinas deste parceiro. Eu ouvi as vozes me dizendo que o amor não estava sendo servido como nutrição. Desabafei com algumas amigas, mas por uma crença cultural que o "amor" transforma tudo, eu resolvi ignorar as vozes e acreditar que, com o tempo aquele homem iria se transformar.
Demorei a romper o vínculo por que acreditei que os atos dele eram "sem querer", inconscientes e frutos do machismo que o tinha adoecido. Acreditei que aquele homem seria transformado pelo amor para construir uma relação baseada na nutrição do bem estar. Busquei humanizar quem não estava nem pedindo para ser humanizado porque internalizei um, dos tantos mitos da masculinidade, que diz: homem é assim mesmo, a mulher tem que educá-lo. Cai no erro romântico de tentar até dar certo, mesmo sofrendo. Me responsabilizei pelas reações que eu tinha diante dos abusos, sempre dizendo o que eu sentia, sem o responsabilizar pelas ações abusivas que me machucavam. Foi uma relação que me derrubou.
Cai, mas levantei. E agora faço o registro público dos atos abusivos que vivi nesse relacionamento como um exercício para romper com o padrão de aceitação desses atos como algo inofensivo ou "coisa da minha cabeça". Pontuei, nomeei e descrevi as ações dele, que no conjunto da relação, me feriram, me machucaram, me fizeram chorar escondida com medo e ansiedade. Agora estou bem, e me somo ao movimento que diz "Chega de abuso!". Precisamos, no mínimo, visibilizar o que é um abuso sofrido e CONSTRANGER quem causa os atos abusivos, para tentar minimizar os abusos que eles seguem causando a outras pessoas. Quanto mais informações temos, mais nos protegemos.
Esse relato se soma a outras vozes de mulheres que na literatura, na ciência, no cinema, na filosofia, nas redes sociais, vêm tornando público o que tem sido tratado como segredo de quarto, de casamento, de namoro, de família. Este meu manifesto trata de uma experiência real, particular e única, mas que é comum e similar a tantas outras. Segundo a ONU, 3 em cada 5 mulheres são vítimas de relacionamento abusivo.
Uma observação a fazer: Sim, houve instantes de amor, carinho e alegria dentro desse relacionamento. Esses instantes faziam eu acreditar que era importante tentar fazer dar certo. Mas esses sentimentos que geram bem estar não eram a base, não eram o padrão, não eram a rotina.
Outra observação a fazer: eu me acho uma mulher inteligente, amada e tenho grandes referencias de amor masculino, feminino. Cair nas armadilhas de um amor abusivo não é uma evidencia de problemas de personalidade, de caráter, de fraqueza. Chega de julgar as vítimas. Vamos julgar e tensionar aquele que comete o abuso.
Os 14 atos (MAIS) abusivos de um relacionamento abusivo:
1º ato - Usa pessoas para falar bem dele
Ele não respeitou o fato de eu estar me relacionando com uma mulher quando me foi apresentado e usou UMA AMIGA para chegar em mim. Fomos apresentados por um casal amigo, mas eu não havia me interessado ao ponto de percebe-lo. Eu estava com alguém e ele viu e mesmo assim fez um movimento para me atrair. O abusador pode usar pessoas "amigas" para apresentá-lo e validá-lo como uma pessoa incrível. Ele ficou durante quase um mês convencendo essa amiga e seu marido a nos aproximar. Ele então enviou recado que gostaria de me conhecer e foi por meio desse casal que me chegou o testemunho que ele era um cara respeitável, digno, confiável, que fazia ações voluntárias na cidade. Assim me atraiu para seu território de conquista, respaldado por pessoas de minha confiança, que depois eu soube, não conheciam nada sobre ele e o passado dele.
2º ato - Uma pizza com as amigas para validá-lo
Logo no início me convidou para sair. Não era um date, eu e ele, como geralmente são os inícios para mim. Era eu, ele e a "turma" dele. A turma de muitas mulheres que não pareciam saber que eu era uma convidada. A primeira coisa que percebi quando cheguei na mesa em que estavam cerca de seis mulheres e ele, foi o olhar de uma que sorriu forçado e constrangida. Ali ele mostrou por mim afeto, paixão. Eu entendi que ele queria que as "amigas" soubessem de mim. Lembro de ter dito para minha psicóloga que eu estranhei aquele movimento. A consideração que ela fez foi para pensamos nas minhas inseguranças. Paguei metade da conta que ele não pediu, mas eu senti uma pressão para pagar e não sei explicar como. Ele continuo na mesa com as amigas e eu voltei sozinha pra casa. Esse convite nunca mais se repetiu em sete meses.
3º ato - Minhas meninas, vulneráveis e instáveis
A primeira discussão que tivemos foi quando ele se referiu a turma dele como "minhas meninas" e eu questionei a linguagem. De forma tranquila perguntei, suas? não seria as meninas delas mesma. Quando ele foi argumentar utilizou vários termos que colocavam as amigas como vulneráveis, ansiosas, deprimidas que precisavam do atendimento dele. Que ele era um "cuidador" delas. E que muitas vezes elas ligavam pra ele tarde da noite pra conversar sobre relacionamentos abusivos que elas tinham e que elas confiavam nele. Eu também estranhei isso, mas segui. Me assegurou que algumas delas parecia depender dos cuidados dele e que ele conseguia manter a distancia "profissional". O abusador vai tentar fazer com que acreditemos naquilo que intuímos que não é verdade.
Depois descobri, através de relatos de algumas estudantes, que ele tocava o corpo sem o consentimento das "meninas dele". Ele era o "treinador" voluntário delas. E se aproveitava de algumas situações para tirar delas o que era conveniente para ele.
4º ato - Surpresa, estava passando por aqui
Podia ser às 6:00 da manhã, às 12:00, às 15:00, às 23:00... Sem uma comunicação ou acordo prévio ele enviava uma mensagem dizendo que estava passando aqui no meu portão de casa. Sempre tinha uma justificativa maravilhosa que era me dar um beijinho e saber como estava. Essas surpresas me tiravam de aulas, de reuniões, de atividades domésticas, de treinos, que me deixavam um pouco incomodada, mas eu disfarçava para não "estragar" a surpresa dele. Contudo, das vezes que eu mencionei ir na casa dele sem avisar, fui alertada por ele que aquilo não seria legal. ele podia fazer surpresas, eu não. As surpresas me geravam certa angústia, mas tentei entender isso na perspectiva da paixão. Uma vez chegou no meio do meu treino sem me avisar com a desculpa que queria me ver porque estava com saudades. Como eu tinha um personal, desconfiei que aquela surpresa era um controle, mas ignorei com a desculpa de fazer aquele relacionamento dar certo.
5º ato - Insistência naquilo que eu digo NÃO
Meu não, não era respeitado. E eu precisava reafirmar um não inúmeras vezes. Ele insistia com o objetivo de fazer eu aceitar um sim que não era meu desejo. Como exemplo, ele chegava de surpresa e dizia: vamos fazer uma loucura, larga tudo e vamos curtir a vida. Eu dizia, não, eu preciso trabalhar. Na sequencia, eu passaria 30 minutos para convencê-lo a deixar eu trabalhar. Ele utilizava vários argumentos, inclusive, que eu não era feliz pq trabalhava muito, o que não é verdade. A insistência ia me deixando zangada, o que levava ao sexto ato...
6º ato - Me achava fofa com raiva
Sentia prazer em provocar meu desprazer. Me chamava de fofa no início, depois me chamava de chata.
7º ato - Um plano para minha carreira (mas jurou que não me conhecia antes)
Me chamou empolgado para uma conversa. A relação estava caminhando para o segundo mês e nesse período falava sempre que oportuno que nunca tinha me visto antes. nem ouvido falar de mim. Então foi muito estranho quando cheguei na casa dele e sentei para ouvi-lo. Ele começou dizendo que "estava pensando" no que eu havia feito de errado na campanha para reitoria. Oi? E que se eu considerasse fazer o que ele havia planejado eu teria grande chances de ganhar na próxima vez. Confesso que eu ouvi, silenciosa, agradeci e voltei pra casa. Mas durante todo o tempo que ele falou e me senti mal. Em casa eu comecei a ficar ansiosa. E a minha reação foi não falar mais com ele. Fiquei estranha. Após esse ato eu pensei em terminar pela primeira vez.
8º ato - Vou te fazer mulher
Poderia ser somente uma performance sexual, mas essa fala vinha carregada de uma séria de discursos sexistas. Mulher é isso, mulher aquilo, mulher é assim, mulher é assado... Esse ato está muito relacionado com os dois seguinte: Correção dos meus atos e Sexo depois das brigas
9º ato - Correção dos meus atos
Era muito comum ele fazer expressões faciais de incomodo diante da minha forma de ser, de falar, de pensar, de dirigir, de sorrir. Uma vez, me disse acompanhado de uma expressão muito séria: "o tom alto da sua voz está me incomodando". Eu reagi imediatamente informando que a ação dele era controladora. Ele começou a explicar que pessoas estavam nos olhando e nos ouvindo e que eu, "uma professora", devia estar preocupada com isso. Só que eu sei, eu estava falando como eu sempre falo, em um café que sempre ia com amigas, familiares e nunca, ninguém me falou isso, nunca pareceu que eu deixo pessoas desconfortáveis com meu tom de voz. Esse é só um exemplo de outros tantos que ele tentava me corrigir. Eu reagia, eu brigava, eu não aceitava as correções dos meus atos, mas a recorrência das correções foi me deixando insegura, irritada. Muitas vezes as correções eram feitas em tom de brincadeira. O que ele queria corrigir, como minhas ideias e meu tom de voz, é parte da minha forma de expressão. Esses atos mostram uma tentativa de controle sobre quem eu sou. E me colocava numa perspectiva de estar inadequada ao lado dele. Em algumas vezes que eu cedia atendendo as expectativa dele e ele manifestava alegria. Uma coisa que ele sempre fazia era pedir para eu cozinhar para ele. Dizia que isso era prova de amor, que uma mulher que não sabe cozinhar era isso ou aquilo. Mas nessa, eu nunca cai.
10º ato - Sexo depois das brigas ou Silêncio (GELO)
Quando havia um conflito que exigia um afastamento ou uma conversa ele queria resolver fazendo sexo. Quando eu forçava a importância de conversar ele ouvia, soltava uma ironia com deboche, dizendo "nossa, você é muito boa com as palavras". E ficava em silêncio. Depois vinha pra cima de mim, na performance de homem apaixonado, para me beijar e fazer sexo. Eu cedi várias vezes. Das vezes que eu não cedi ele foi embora e sumia. Não me procurava, não queria conversar. Depois de longos dias, ele aparecia com uma surpresa ou pedindo uma ajuda a "professora". O que nos aproximava novamente. Quando ele não voltava eu ia atras. Foi comum ele sumir, me ignorar e depois aparecer como se nada tivesse acontecido. Geralmente, voltava pedindo minha ajuda em alguma coisa (11º ato).
11º ato - Me ajuda, por favor
Chegava manhoso, carinhoso e pedia para eu ajudar em alguma coisa do "trabalho". Dizia que se eu ajudasse seria mais rápido, mais efetivo. No início eu fazia com prazer, mas depois foi tomando meu tempo. Eu parava de fazer meus trabalhos para fazer os dele. Era tanta artimanha e manipulação que eu fazia rápido para poder voltar para minhas coisas.
12º ato - Minhas amizades não prestavam
Sobre todas as pessoas ao meu redor, TODAS. Inclusive o amigo dele que era meu amigo. Ele tinha algo para me alertar sobre. Sempre num tom: cuidado com essa pessoa é melhor você não confiar.
13º ato - Eu sou a errada
Ele nunca usou essa frase literalmente, mas agia assim quando eu expressava minhas discordâncias. Era comum ele fazer eu pensar que "meu jeito" estava errado.
14º ato - Não gosto de beijos em lugares públicos / Não posso segurar sua mão
Esse abuso foi um dos que mais me violentou. Ele tentava me convencer que a personalidade dele era reservada. Que ele não costumava beijar namoradas em publico. Nas primeiras semanas, para me conquistar, ele andou de mãos dadas e me beijou publicamente. Depois, ele não gostava mais de sair, adorava ficar na minha casa. E estava sempre que queria. E quando saíamos para dar uma volta era tarde da noite ou cedo da manha, por que ele dizia que eram os melhores horários para ele. Quando eu o chamava para ir a algum rolê, ele dizia que, para me proteger, era melhor eu não ser vista com ele, porque eu era uma professora. Mas quando ele era visto comigo, ele adorava me apresentar como a amiga professora da UNILAB. Foram várias as vezes que discutíamos por causa disso. Eu me chateava, chorava, brigava. E ele sempre argumentava que isso não era tão importante, que ele sempre foi assim. Até que eu encontrei ele numa festa fazendo o que? Beijando uma outra mulher publicamente. Vi uma vez, mas amigas viram outras vezes.
PONTO FINAL PARA OS ABUSOS
Após uma sequencia de atos frios desse homem eu fui me acalentar lendo bell hooks. Aleatoriamente peguei o capítulo Vendendo uma buceta quente, do livro Olhares Negros, e fui tomada de muitas percepções que já sabia, mas estava cega. Escrevi um poema para ele no dia 10 de março de 2022, carregada de muita dor. Após isso coloquei um ponto final. Acabou. Ele tentou se aproximar de mim de algumas formas indiretas. Nunca diretamente. No início eu saia do espaço onde ele estava. Certo dia, no meu treino matinal ele apareceu com uma garota, eu fiquei muito nervosa. Meu amigo que não sabia de nada percebeu e ao chegar em casa me enviou uma mensagem pelo whatsapp: "Carol eu sei que não é Minha conta, mas se não estou equivocado vc estava fugindo do cara lá na Santa Rita, não sei o quê que ele te fez mas vc não está no Espaço de ninguém, da próxima vez vamos descer pelo mesmo caminho que subimos e não vamos fugir de ninguém. Vamos enfrentar o que tiver na frente mas não quero vc desviando o caminho por causa de alguém. Podemos desviar de caminho por causa de Cabras mas não de alguém". Essa mensagem me fez chorar muito mas também me fortaleceu. A medida que fui conversando com minha namorada, amigas, amigos e familiares, eu passei a entender melhor as ações abusivas desse homem que continuavam após o fim do relacionamento. Fui me fortalecendo no apoio. Hoje me sinto parte de uma rede que não se cala mais.